Catharina Signorini
A noite estava quente, clima típico do verão gaúcho. No relógio, os ponteiros já haviam passado da meia-noite, sinalizando o início do dia 18 de março. Apesar do hábito de dormirem cedo, os pais de Lilian estavam acordados, aguardando a filha, que havia saído de Rio Grande com direção a Humaitá, noroeste do Rio Grande do Sul.
O abraço dos pais, que até então era um conforto, hoje é uma lembrança difícil. “Eu abracei meu pai e minha mãe juntos, e a Manuela me abraçou pela cintura. Ela me pediu para não morrer. Eu nunca vou esquecer”, conta, com os olhos cheios de lágrimas.
Aos 39 anos, Lilian Bernadete Storch, é graduada em enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e, atualmente, trabalha como enfermeira na pediatria do Hospital Universitário Miguel Riet Corrêa Jr da Universidade Federal do Rio Grande (HU-Furg/Ebserh). Logo após a graduação, em 2005, Lilian trabalhou no Hospital Escola da UFPel. No ano seguinte, após identificar sua vontade de estar mais perto da família, a enfermeira decidiu participar de uma seleção para trabalhar no Hospital São Francisco de Paula, em Passo Fundo. Durante oito anos Lilian viveu em Passo Fundo, onde casou e deu à luz a Manuela, sua única filha. Após o divórcio, Lilian decidiu estar ainda mais perto dos pais e retornou a Humaitá, onde permaneceu até dezembro de 2016, quando foi aprovada no concurso HU-Furg/Ebserh.
Apesar das dificuldades financeiras, Lilian sempre cultivou o sonho de fazer a graduação em Enfermagem. A mãe, Bernadete, trabalhou durante anos como atendente de enfermagem e, posteriormente, como técnica de enfermagem. Foram mais de 35 anos dedicados à enfermagem. “Eu nunca sonhei ser outra coisa. Desde criança eu sempre quis ser enfermeira. Profissionalmente eu sou uma pessoa realizada, eu nunca tive dúvidas disso”, conta Lilian.
Para que este sonho se tornasse realidade, Lilian se mudou para Pelotas, onde foi recebida por alguns familiares. Logo que chegou à capital do doce, foi trabalhar no comércio. Depois de algum tempo, conseguiu uma bolsa em um cursinho pré-vestibular. O esforço culminou na aprovação.
De Humaitá para Rio Grande
Quando voltou para casa dos pais, em Humaitá, Lilian estava enfrentando dificuldades financeiras. Para dar conta das despesas, a enfermeira chegou a acumular três empregos em cidades diferentes. Em razão do volume de trabalho, a enfermeira passava até 48h fora de casa.
Um dia, Lilian estava trabalhando em Campo Novo e recebeu uma ligação da prefeitura da Humaitá para avisar que a Manuela tinha quebrado o braço. “Nesse dia eu decidi que não dava mais. Além de trabalhar em três lugares, eu não estava vendo a minha filha crescer e nem estava conseguindo pagar as contas, pois não estávamos recebendo”, revela.
Decidida a mudar sua vida, a enfermeira se inscreveu para o concurso do HU-Furg/Ebserh. “Eu nunca vou esquecer o dia que eu cheguei em casa e minha mãe me disse assim: - Não faz esse concurso, tu vais passar e Rio Grande é muito longe”. A aprovação chegou. E, com ela, um novo lar.
Em dezembro de 2016. Lilian desceu em Rio Grande só com uma mala. Sem mudança. Sem móveis. Sem a Manuela.
Ao chegar no município, a enfermeira ainda enfrentava muitas dificuldades, principalmente financeiras. “Ainda bem que Rio Grande me acolheu de uma forma muito carinhosa, eu vou contra as pessoas que falam alguma coisa daqui. Eu acho que as pessoas daqui, pelo menos as que eu encontrei, tem um coração muito bondoso”.
Nos primeiros meses, Lilian foi se adaptando a nova rotina de trabalho, aos colegas, à cidade. E, também, foi se preparando para receber a Manu, que chegou em fevereiro de 2017.
Mesmo em Rio Grande há mais de três anos, mãe e filha ainda enfrentam dificuldades em criar novos vínculos. “Eu passei dois anos sem sair de casa para nada que não fosse com ela”, explica. Nos primeiros dois anos, Lilian e Manuela moravam sozinhas. No terceiro ano no município, elas receberam a companhia de Guilherme, sobrinho da enfermeira, que havia sido aprovado, para cursar Biologia na Furg. A chegada de Guilherme vez muito bem para a família, “estava mais tranquilo, Manuela estava mais feliz, convivendo com outra pessoa”.
Em dezembro de 2019, Lilian levou Manu para Humaitá, para passar as férias com os avós. Quando o ano letivo estava prestes a iniciar, em fevereiro, a enfermeira foi buscar a filha e o sobrinho. Após o período de férias, Guilherme decidiu que não ia voltar para Rio Grande. Neste momento, Manuela começou a insistir que não queria voltar, e dizia para a mãe “que a vida era mais que isso, para eu desistir do trabalho”.
Passado o momento de resistência, Lilian e Manu voltaram para Rio Grande, onde ficaram até dia 17 de março, quando as escolas começaram a suspender as atividades presenciais. Foi aí que Lilian decidiu que era mais seguro levar a filha de volta para Humaitá.
Fugindo do coronavírus
O clima de tensão já havia tomado conta do país. Por ser da área da saúde, Lilian já sabia o que estava por vir, e decidiu empreender um “plano de fuga”, no dia 17 de março.
“Eu acabei meio que saindo fugida, com a Manuela. Liguei para um amigo de infância, que mora em frente à casa dos meus pais, em Humaitá. Ele estava no Porto, aqui em Rio Grande. Ele veio trazer uma carga de grãos e estava voltando, com o caminhão vazio. Então eu e a Manuela fugimos de caminhão”, conta Lilian, enquanto esboça um tímido sorriso.
Na boleia do caminhão, Manuela e Lilian chegaram a Humaitá. Durante cerca de duas horas, a enfermeira, a filha e os pais, trocaram um pouco de carinho, conversaram, se despediram. Depois, Lilian dormiu por cerca de três horas, até ser acordada pelo pai para pegar um ônibus até Rio Grande.
“Foi a primeira vez que não levei nada, só fui com a minha bolsa. Meu pai perguntava se eu não tinha nada para carregar, se eu não tinha esquecido de nada, e eu respondia: - Não pai, dessa vez eu não trouxe nada. Eu não lembrei de levar o material escolar da Manuela, os livros didáticos. Todos os dias eu fotografo os livros e mando as fotos para ela fazer as atividades”, explica.
O trabalho na linha de frente
Mesmo sendo um inimigo que não se pode enxergar a olho nu, o coronavírus provocou mudanças visíveis no HU-Furg/Ebserh. Mudou o espaço físico, mudou o comportamento entre os colegas. “A gente não poder dar um abraço, não poder chegar perto”, fala, com a voz embargada. “Para muitas pessoas aqui a equipe de trabalho é a família. Para mim mesmo. Dói muito não poder contar com o abraço de um deles. E eu sei que para tantos outros também”.
Das dificuldades que o momento impõe, Lilian conta que as piores são o medo e a incerteza. A enfermeira relata que muitas vezes sua vontade é ficar em casa, é acordar e pensar que tudo que está acontecendo era um pesadelo que acabou.
“Na verdade, as coisas ainda estão muito calmas aqui. O que incomoda mais é a incerteza. Nós vamos ter casos? Quantos casos nós vamos ter? Vai ser amanhã? Vai ser depois de amanhã? Vão ser casos graves? Vão ser casos menos graves? A gente vai ser contaminar? Eu vou contaminar o colega? Será que o colega vai me contaminar? Eu acho que é a insegurança que gera todo um pavor”, relata.
Nesses momentos, o apoio dos colegas tem sido fundamental. “Talvez da pior forma, a gente descobriu o quanto podemos contar uns com os outros”.
Medo e saudades
Se pudesse ter um desejo atendido neste momento, Lilian gostaria de poder garantir à filha que nada vai acontecer com ela, já que todos os dias Manu pede para ela prometer que não vai morrer. “Só que não tem como prometer essas coisas, não tem como jurar, prometer de dedinho”, lamenta.
Na área da saúde, os profissionais são instruídos a sempre enxergar o paciente como o amor de alguém. Com os riscos da pandemia, muitas vezes o olhar acaba se transformando. Depois de uma respiração mais profunda, a enfermeira confessa “dessa vez eu me enxergo como sendo o amor de alguém, que eu gostaria muito de poder reencontrar”.
Um olhar sobre a pandemia
Enquanto conta sobre todas as transformações que pandemia provoca na vida das pessoas, Lilian diz que tem ouvido com frequência algumas reclamações. A enfermeira diz que todos os dias ela percebe mudanças em si mesma.
“Não são os filhos que tornam as coisas pesadas, não é o trabalho que torna as coisas pesadas. É a forma como a gente reage a tudo isso”, enfatiza.
A enfermeira também refuta o status de herói, que a sociedade tem dado aos profissionais da saúde. Para ela, médicos, enfermeiros e técnicos continuam desempenhando suas atividades como sempre, e a única diferença é que agora eles estão sendo reconhecidos. “Herói é quem faz o que é correto para o próximo. Para o vizinho, para o seu amigo, para a pessoa que ele não conhece. Quando eu estou fazendo o correto, eu estou sendo um herói”, enfatiza.
Planos para o fim da pandemia
Questionada sobre o que gostaria de fazer em Rio Grande quando a pandemia acabar, a enfermeira conta que tem um ponto turístico no município que ela gostaria de conhecer. “Eu não conheço os molhes da barra, eu não consegui levar a Manuela lá”.
Com otimismo, Lilian afirma que tudo isso vai passar. E, quando tudo isso passar, estar no meio do abraço dos pais e sentir os braços da filha segurando sua cintura, deixará de ser uma lembrança doída e voltará a ser o que sempre foi.
Foto: Gerusa Machado/