Há ideias tão boas que surpreende que ninguém as tenha tentado antes. Bom Menino, primeiro longa do diretor Ben Leonberg, é uma delas: um filme de terror contado inteiramente do ponto de vista de um cachorro. Nenhum truque de câmera gratuito, nenhum corte que revele o que o animal não veria. Tudo o que acontece é filtrado pela percepção de Indy, o cão protagonista (interpretado pelo próprio cachorro de Leonberg). O resultado é uma experiência cinematográfica curiosamente íntima e emocional, que mistura o suspense sobrenatural de uma história de casa mal-assombrada com o afeto incondicional de um pet tentando salvar seu dono.
A premissa é simples, mas engenhosa: Todd, o dono de Indy, está doente (algo grave, embora nunca totalmente explicado) e decide se isolar em uma antiga casa de família, em meio a uma floresta. Logo, coisas estranhas começam a acontecer, mas apenas Indy parece percebê-las. O espectador, preso à perspectiva do cão, partilha da mesma confusão e angústia: ouvimos ruídos, percebemos sombras, sentimos presenças; mas nunca temos a certeza do que é real. Leonberg limita a câmera a cerca de 50 centímetros do chão, construindo todo o filme a partir desse ponto de vista canino, o que transforma cada corredor escuro e cada escada em um labirinto ameaçador.
É um conceito ousado, especialmente porque não vemos os rostos humanos com clareza, mas o que poderia tornar o filme distante acaba ampliando a imersão. Leonberg e sua equipe filmaram Bom Menino ao longo de mais de 400 dias, adaptando-se ao comportamento natural de Indy, captando reações, olhares e movimentos autênticos. A paciência do diretor valeu a pena: o cão carrega o filme com um carisma inacreditável, e a montagem, que alterna entre a curiosidade ingênua e o pavor puro, torna cada cena uma pequena obra-prima de empatia cinematográfica.
O grande triunfo de Bom Menino é usar o chamado Efeito Kuleshov, conceito clássico do cinema soviético: a ideia de que o significado de uma imagem muda dependendo da sequência em que é apresentada. Leonberg aplica isso magistralmente: ao alternar closes do olhar de Indy com diferentes eventos da casa, o diretor nos faz projetar no animal uma gama inteira de emoções humanas: medo, esperança, saudade, desespero. Nunca vemos o cão “atuar”, mas acreditamos em cada sentimento dele.
O filme, porém, não é perfeito. A falta de contexto humano às vezes torna a trama confusa, principalmente quando os elementos sobrenaturais começam a se intensificar. Há lacunas narrativas e perguntas que o roteiro não se esforça em responder, talvez por escolha artística, talvez por limitação orçamentária. Ainda assim, o compromisso de Leonberg com o conceito é admirável, e mesmo suas falhas parecem coerentes com o olhar restrito de seu protagonista: como o cachorro, nós também só entendemos fragmentos.
Visualmente, Bom Menino é um exemplo de criatividade com recursos mínimos. Leonberg trabalha com luzes e sons de modo magistral: as sombras parecem respirar, os ruídos se arrastam pelas paredes, e o som da respiração do cão nos coloca dentro de sua cabeça. O resultado é um terror mais emocional do que assustador. Há poucos sustos tradicionais, mas muita tensão psicológica.
Além do valor técnico, há algo de profundamente tocante na forma como o filme retrata a relação entre o cão e seu dono. Em meio à doença, ao isolamento e ao terror, o amor incondicional de Indy se torna o verdadeiro fio condutor da narrativa. A câmera o segue quando ele tenta proteger Todd, quando fareja o perigo invisível, quando late para o nada e, em cada gesto, o filme traduz um sentimento universal: o de querer salvar quem amamos, mesmo sem entender o que está acontecendo.
Se o curto longa de 70 minutos perde fôlego no terço final, alongando um pouco o que talvez funcionasse melhor como um média-metragem, ele ainda se mantém como um dos experimentos mais originais do terror recente. Bom Menino é o raro caso de um filme que consegue equilibrar afeto, técnica e tensão, sem trair a pureza de sua ideia inicial.
No fim, é difícil não sair do cinema emocionado. Não de medo, mas de ternura. Ben Leonberg conseguiu transformar o olhar de um cachorro em espelho da humanidade: fiel, curioso, confuso e vulnerável diante do desconhecido. Um bom menino, em todos os sentidos.
E se “Cinderela” fosse contado não pelos olhos da doce donzela oprimida, mas pela perspectiva de uma de suas meias-irmãs: rejeitada, obcecada e deformada por dentro e por fora? É essa a premissa perturbadora de A Meia-Irmã Feia, o impressionante primeiro longa da diretora norueguesa Emilie Blichfeldt, que transforma um conto de fadas em um retrato grotesco da crueldade estética e emocional imposta às mulheres.
Aqui, a protagonista é Elvira (Lea Myren, em uma atuação extraordinária), forçada pela mãe (Ane Dahl Torp) a se submeter a rituais medievais de beleza como mutilações, cirurgias improvisadas e banhos químicos, para conquistar a atenção de um príncipe. A mãe, uma arrivista em busca de status social, vê na filha apenas um instrumento de ascensão, e no corpo dela, um campo de batalha. O resultado é um filme que leva a máxima “a beleza dói” a um nível literalmente torturante.
Blichfeldt filma tudo com uma elegância cruel, unindo o refinamento visual de Sofia Coppola à ferocidade corporal de Julia Ducournau (Titane). A fotografia exala decadência: vestidos carcomidos, salões mofados e banquetes apodrecidos que mais parecem cadáveres ornamentados. O conto de fadas é corroído pela podridão que sempre esteve sob sua superfície.
Em suas cenas mais gráficas, Blichfeldt demonstra um domínio impressionante da linguagem visual do horror, equilibrando repulsa e fascínio. Mas a diretora não recorre ao “torture porn” barato. Cada momento de dor tem um propósito claro, funcionando como metáfora da pressão patriarcal e materna que molda aqueles corpos e identidades femininas ao gosto de um sistema doente.
As sequências de transformação de Elvira são quase ritualísticas: há algo de religioso na forma como a câmera observa os cortes, os sangramentos, os espelhos manchados de sangue e as costuras que tentam “corrigir” imperfeições. O espectador sente a dor, mas também a hipnose que acompanha o sacrifício. É um horror que não apenas choca, mas também fascina, e essa dualidade é o que torna o filme tão poderoso.
Há ecos de A Substância e Pobres Criaturas na crítica feroz à sociedade que adora transformar mulheres em monstros para depois puni-las por sua monstruosidade. Mas A Meia-Irmã Feia encontra sua própria voz: um pesadelo feminista com humor negro e estética de conto gótico, que ri da obsessão por príncipes e perfeição enquanto nos faz contorcer de desconforto. A violência aqui é alegoria. A mutilação física reflete a mutilação psicológica de uma jovem moldada à força por uma estrutura que mede valor em espelhos rachados.
O roteiro, coescrito por Blichfeldt e Ida Elise Broch, alterna entre o grotesco e o melancólico, criando uma história que é tanto uma sátira social quanto uma tragédia íntima. A relação entre Elvira e sua mãe é um dos pontos mais fortes do filme: um vínculo de amor distorcido, alimentado pela ambição e pela vergonha. É uma dinâmica que ecoa na sociedade contemporânea, onde a pressão estética e a busca por validação ainda definem tantas relações entre mães e filhas.
No centro de tudo está Lea Myren, que entrega uma performance física e emocionalmente devastadora. Seu corpo, que muda, sangra e colapsa, é o veículo de uma tragédia pessoal e coletiva. É impossível não lembrar de Isabelle Adjani em Possessão ou de Shelley Duvall em O Iluminado: mulheres cuja sanidade se esfarela diante de um mundo que as oprime. Myren vai além do sofrimento. Ela nos faz entender a natureza viciosa do desejo de ser amada, mesmo quando isso significa perder a própria humanidade.
Blichfeldt também encontra espaço para o humor, um humor perverso e autoconsciente, que surge nas pequenas ironias da narrativa. Em determinado momento, um dos nobres da corte comenta, encantado, sobre a “beleza peculiar” de Elvira, enquanto ela mal consegue manter o rosto inteiro após mais um procedimento brutal. É um riso nervoso; o tipo de humor que nasce quando o horror se torna tão extremo e absurdo que só resta rir.
Ao final, quando o baile chega e o preço da beleza é cobrado, a moral da história soa clara e brutal: “A beleza é dor e a dor é o que sobra quando todo o resto é arrancado.” A Meia-Irmã Feia é um filme de horror de rara inteligência, que revisita os contos de fadas para devolvê-los à sua forma original: cruel, moralizante e cheia de sangue.
Mais do que uma crítica ao patriarcado, é um espelho incômodo sobre como a obsessão com aparência e status pode corromper até o amor mais íntimo. Blichfeldt nos lembra que, em algum lugar entre o desejo de ser vista e o medo de ser julgada, a verdadeira monstruosidade talvez resida não nas cicatrizes visíveis, mas naquilo que estamos dispostos a sacrificar para sermos aceitos.
Veja aqui tudo que é novidade nas telonas, a partir da análise de Vinícius Bastos.

