Com O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho entrega sua obra mais ambiciosa - um filme de espionagem à brasileira que transforma o gênero em reflexão sobre memória, identidade e esquecimento coletivo. Longe dos espiões elegantes e das conspirações globais do cinema americano, aqui o segredo é outro: o da própria nação, que tenta apagar seus crimes e silenciar os que ousam lembrar.
O protagonista, Marcelo (Wagner Moura), retorna ao Recife sob uma identidade falsa. Um homem perseguido, não por governos estrangeiros, mas pela própria pátria, por policiais corruptos e empresários influentes que usam a máquina ditatorial e suas conexões políticas e monetárias para caçar e destruir seus desafetos.
Ao tentar reencontrar o filho após a morte da companheira, ele se vê arrastado para uma rede de poder e vingança que revela um Brasil sufocado pela repressão de seu tempo. Esses homens não eram ainda “fantasmas”, eram forças muito reais, violentas e impunes. São fantasmas apenas para nós, hoje, que tentamos compreender o que o país preferiu esquecer.
Kleber constrói um filme que dialoga com o cinema de espionagem clássico, com ecos de Hitchcock e de John le Carré, mas o faz a partir de uma inversão profunda do gênero. Em vez de alguém buscando proteger um Estado, acompanhamos um homem fugindo das engrenagens de sua própria nação, corroída, corrupta, autoritária.
O “agente secreto” do título não é o herói que esconde segredos, mas o sujeito que tenta revelá-los: alguém que luta contra o apagamento da história e da memória nacional. É um “espião” às avessas, cercado de inimigos que se confundem com as próprias instituições.
Assistir à O Agente Secreto é, também, um exercício de reconhecimento cultural. Desde os carnavais cobertos de confete até lendas urbanas como a “Perna Cabeluda”, o filme evoca símbolos, sons e imagens que pertencem à alma do Brasil.
A reconstituição dos anos 1970 é assombrosa em escala e precisão: cabines telefônicas, anúncios de rádio, automóveis, texturas de tecidos e arquitetura modernista em decadência. É um filme que reconstrói o passado com a veracidade de um documento e o lirismo de uma lembrança.
A escala da produção impressiona. O design de produção é irretocável, e há cenas que beiram o épico, como a tomada da janela de um cinema que revela a paisagem de Recife em sua plenitude, um momento de respiração e encantamento que também simboliza o olhar do diretor sobre sua cidade. Kleber demonstra um amor quase religioso pela sala escura e pelo poder do cinema de preservar aquilo que o tempo e o descaso tentam apagar.
Wagner Moura entrega uma das atuações mais complexas de sua carreira. Ele faz de Marcelo um homem exausto, mas ainda guiado por uma chama de curiosidade e empatia. Alguém que, apesar da perseguição, continua fascinado pelas pessoas e pelas suas histórias.
Moura é um incontestável astro de cinema e domina o filme com sutileza, traduzindo o espírito de um país em que a resistência é silenciosa, e o heroísmo, cotidiano. Seu olhar contém tanto amor quanto indignação, e sua presença é o eixo moral de um mundo que perdeu a noção de justiça.
Mas O Agente Secreto é também um filme de rostos anônimos, de coadjuvantes que, em sua aparente marginalidade, compõem o retrato mais profundo e humano do Brasil daquela época. Dona Sebastiana, Hans, Clóvis e tantos outros vivem entre a fuga e o refúgio, lutando para não serem apagados por aqueles que controlam a narrativa oficial.
Suas histórias cruzam a do protagonista, não como peças de uma trama linear, mas como ecos de uma mesma resistência. Há momentos em que a narrativa desacelera e parece se dispersar, mas é aí que Kleber atinge o coração do filme: ao nos colocar dentro da vida dessas pessoas, em sua banalidade, medo e esperança. É um retrato coletivo de um país à deriva, em que o absurdo e a violência se tornaram rotina e onde, de alguma forma, seguimos sobrevivendo.
Kleber Mendonça Filho faz de cada personagem, mesmo o mais efêmero, um lembrete da dignidade e da complexidade humana diante do horror. Suas figuras secundárias não servem apenas à trama, mas à reconstrução do espírito de uma época: o de um Brasil que já não se reconhecia, mas ainda pulsava nas brechas de solidariedade e ironia.
Politicamente, o filme é contundente sem ser panfletário. O retrato das autoridades corruptas e da violência institucionalizada expõe o teatro do poder, uma performance grotesca que atravessa décadas e ainda define a estrutura social do país. É um espelho desconfortável, onde o passado e o presente se confundem.
Mais do que um suposto filme de espionagem, O Agente Secreto é uma elegia sobre o esquecimento. Fala de um país que transforma seus traumas em ruínas e depois constrói monumentos sobre elas, fingindo que nada aconteceu.
Sem precisar recorrer à tragédia explícita, Kleber deixa claro que as histórias interrompidas pela ditadura continuam ecoando. O filme encerra-se não com respostas, mas com a sensação de que as feridas seguem abertas, e que lembrar ainda é um ato de resistência.
Há ideias tão boas que surpreende que ninguém as tenha tentado antes. Bom Menino, primeiro longa do diretor Ben Leonberg, é uma delas: um filme de terror contado inteiramente do ponto de vista de um cachorro. Nenhum truque de câmera gratuito, nenhum corte que revele o que o animal não veria. Tudo o que acontece é filtrado pela percepção de Indy, o cão protagonista (interpretado pelo próprio cachorro de Leonberg). O resultado é uma experiência cinematográfica curiosamente íntima e emocional, que mistura o suspense sobrenatural de uma história de casa mal-assombrada com o afeto incondicional de um pet tentando salvar seu dono.
A premissa é simples, mas engenhosa: Todd, o dono de Indy, está doente (algo grave, embora nunca totalmente explicado) e decide se isolar em uma antiga casa de família, em meio a uma floresta. Logo, coisas estranhas começam a acontecer, mas apenas Indy parece percebê-las. O espectador, preso à perspectiva do cão, partilha da mesma confusão e angústia: ouvimos ruídos, percebemos sombras, sentimos presenças; mas nunca temos a certeza do que é real. Leonberg limita a câmera a cerca de 50 centímetros do chão, construindo todo o filme a partir desse ponto de vista canino, o que transforma cada corredor escuro e cada escada em um labirinto ameaçador.
É um conceito ousado, especialmente porque não vemos os rostos humanos com clareza, mas o que poderia tornar o filme distante acaba ampliando a imersão. Leonberg e sua equipe filmaram Bom Menino ao longo de mais de 400 dias, adaptando-se ao comportamento natural de Indy, captando reações, olhares e movimentos autênticos. A paciência do diretor valeu a pena: o cão carrega o filme com um carisma inacreditável, e a montagem, que alterna entre a curiosidade ingênua e o pavor puro, torna cada cena uma pequena obra-prima de empatia cinematográfica.
O grande triunfo de Bom Menino é usar o chamado Efeito Kuleshov, conceito clássico do cinema soviético: a ideia de que o significado de uma imagem muda dependendo da sequência em que é apresentada. Leonberg aplica isso magistralmente: ao alternar closes do olhar de Indy com diferentes eventos da casa, o diretor nos faz projetar no animal uma gama inteira de emoções humanas: medo, esperança, saudade, desespero. Nunca vemos o cão “atuar”, mas acreditamos em cada sentimento dele.
O filme, porém, não é perfeito. A falta de contexto humano às vezes torna a trama confusa, principalmente quando os elementos sobrenaturais começam a se intensificar. Há lacunas narrativas e perguntas que o roteiro não se esforça em responder, talvez por escolha artística, talvez por limitação orçamentária. Ainda assim, o compromisso de Leonberg com o conceito é admirável, e mesmo suas falhas parecem coerentes com o olhar restrito de seu protagonista: como o cachorro, nós também só entendemos fragmentos.
Visualmente, Bom Menino é um exemplo de criatividade com recursos mínimos. Leonberg trabalha com luzes e sons de modo magistral: as sombras parecem respirar, os ruídos se arrastam pelas paredes, e o som da respiração do cão nos coloca dentro de sua cabeça. O resultado é um terror mais emocional do que assustador. Há poucos sustos tradicionais, mas muita tensão psicológica.
Além do valor técnico, há algo de profundamente tocante na forma como o filme retrata a relação entre o cão e seu dono. Em meio à doença, ao isolamento e ao terror, o amor incondicional de Indy se torna o verdadeiro fio condutor da narrativa. A câmera o segue quando ele tenta proteger Todd, quando fareja o perigo invisível, quando late para o nada e, em cada gesto, o filme traduz um sentimento universal: o de querer salvar quem amamos, mesmo sem entender o que está acontecendo.
Se o curto longa de 70 minutos perde fôlego no terço final, alongando um pouco o que talvez funcionasse melhor como um média-metragem, ele ainda se mantém como um dos experimentos mais originais do terror recente. Bom Menino é o raro caso de um filme que consegue equilibrar afeto, técnica e tensão, sem trair a pureza de sua ideia inicial.
No fim, é difícil não sair do cinema emocionado. Não de medo, mas de ternura. Ben Leonberg conseguiu transformar o olhar de um cachorro em espelho da humanidade: fiel, curioso, confuso e vulnerável diante do desconhecido. Um bom menino, em todos os sentidos.
Veja aqui tudo que é novidade nas telonas, a partir da análise de Vinícius Bastos.

